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18.12.05

O ESTADO das COISAS - Fernando Rebelo



Na proposta do actual Governo para uma nova Lei de Bases do Sistema Educativo, podia ler-se o seguinte no ponto III da Exposição de Motivos: “A missão fundamental da educação é hoje, mais do que nunca, fornecer a cada pessoa os meios para o desenvolvimento de todo o seu potencial, para o exercício de uma liberdade autónoma, consciente, responsável e criativa. Há, assim, que assegurar uma educação que prossiga conjugada e sequencialmente as finalidades do aprender a ser e a viver juntos, do aprender a estar, do aprender a conhecer, do aprender a fazer, do aprender a pensar e aprofundar autonomamente os saberes e as competências.”Mais à frente, no Capítulo II , Organização do sistema educativo, na Secção II, Educação escolar, Subsecção I Ensino Básico, poder-se-á ler a alínea g) do Artigo 12º, Objectivos do ensino básico: “Promover as actividades manuais e a educação artística, de modo a sensibilizar para as diversas formas de expressão estética e a detectar e estimular aptidões nestes domínios;”. Logo aqui nos assaltam algumas questões: quem e como poderá detectar aptidões nestes domínios entre os alunos que frequentam este ciclo de ensino? O que se entende por «aptidão» em termos da prática teatral? E, assim, parece que voltamos à questão exposta páginas atrás: a da formação inicial de professores.Continuemos a análise do documento. No Artigo 13º, Organização do ensino básico, podemos ler na alínea a) do ponto 3.: “Para o primeiro ciclo, o desenvolvimento da linguagem oral e a iniciação e progressivo domínio da leitura e da escrita, das noções essenciais da aritmética e do cálculo, do meio físico e social e das expressões plástica, dramática, musical e motora.”; logo a seguir, na alínea b), lemos: “Para o segundo ciclo, a formação humanística, artística, física e desportiva, científica e tecnológica e a educação motral e cívica,(...)”.
Seria agora o momento de analisar os ‘curricula’ deste grau de ensino a fim de poder avaliar com rigor aquilo que, na prática, significam estas palavras. No 1º ciclo mantém-se a presença da expressão dramática, durante os quatro anos de duração desse ciclo, mas exactamente como se encontrava nos anteriores ‘curricula’. É ao professor que cabe gerir aqueles conteúdos, as escolas não têm meios para contratar docentes especializados naquela área e, amargamente, teremos que concluir com um «tudo como dantes, quartel general em Abrantes...». Quanto ao 2º ciclo, o Teatro poderá aparecer como oferta de escola se na mesma escola houver no quadro de nomeação definitiva de docentes alguém que se disponha a assegurar a leccionação dessa disciplina. Parece que, desta forma, se desperdiçará irremediavelmente a oportunidade de “detectar e estimular aptidões” no domínio das artes. Os nossos alunos, na sua grande maioria, chegarão aos seus 12-13 anos de vida completamente alheios aos fenómenos estéticos e artísticos; o sistema educativo do qual fazem parte não soube, não pôde ou não quis dar a devida atenção a esta questão. A formação destas crianças é pobre, porque incompleta. A Escola parece, assim, surgir cada vez mais virada para uma lógica de mercado e não para a formação integral do indivíduo. Passemos à Subsecção II, Ensino secundário e vejamos o que diz a alínea c) do Artigo 15º, Objectivos do ensino secundário: “Desenvolver as competências necessárias à compreensão das manifestações culturais e estéticas e possibilitar o aperfeiçoamento da expressão artística;”. Como se poderá aperfeiçoar, questionamo-nos nós, aquilo que não se praticou antes?


A realidade é esta: também no 1º ciclo do ensino secundário o Teatro poderá surgir como oferta de escola; em termos de docência, a situação é exactamente a mesma que descrevemos para o 2º ciclo do ensino básico. A modalidade de leccionação é, porém, mais bizarra: nos 7º e 8º anos, os alunos que escolherem esta opção frequentá-la-ão durante uma parte do ano lectivo, na outra parte frequentarão outra opção; não existem programas emanados pelo Ministério da Educação e, no 9º ano, os alunos terão então, se assim o entenderem, a disciplina durante todo o ano lectivo; a carga horária da disciplina é manifestamente insuficiente: uma aula de duas horas, uma vez por semana. Este quadro é, de facto, grotesco. As expressões artísticas são, na verdade, tratadas como parentes pobres do sistema educativo. Cairão por terra, a nosso ver, as palavras que citámos no ínicio deste capítulo e que constavam da «Exposição de Motivos» que presidiam à formulação de uma nova Lei de Bases do Sistema Educativo. Naquilo que diz respeito às expressões artísticas e à sua efectiva presença no nosso sistema educativo nada mudou. Curiosamente, uma instituição de ensino superior pública mantém há alguns anos uma Licenciatura em Estudos Teatrais com uma vertente, em termos de saídas profissionais, destinada ao ensino. A instituição tem nome, claro, chama-se Universidade de Évora. Dos alunos que já concluíram a referida Licenciatura contam-se pelos dedos de uma mão aqueles que se encontram a leccionar nas nossas escolas – quer do ensino básico, quer do ensino secundário. Por outro lado, e para concluir, refira-se que a presente Reforma curricular eliminou dos ‘curricula’ uma disciplina que existiu durante mais de uma década – Oficina de Expressão Dramática -, disciplina essa que foi leccionada em mais de duas dezenas de escolas a nível nacional e, na qual, o Ministério da Educação investiu em termos de equipamentos técnicos alguns milhares de, na altura, escudos. Essa disciplina nunca foi, tanto quanto sabemos, objecto de uma avaliação séria e rigorosa. No quadro da nova Reforma foi pura e simplesmente eliminada como se se tratasse de algo de somenos importância... Este é, pois, o estado em que as coisas estão.
3. CONCLUSÃO (ou não...) Numa das suas obras Peter Brook diz: “o teatro é, para aquele que o faz, um exercício permanente. Representar, aceitar o desafio do jogo, é, assim, aceitar melhorar-se através do prazer, o que faz do teatro um instrumento fantástico da educação. O aluno sentado na sala de aula, escutando, não está em situação que o leve a descobrir as suas potencialidades. Pode fazê-lo no desporto, mas isso não toca senão uma parte da sua personalidade.”. Depois destas palavras poderíamos dar por concluído este trabalho. Na verdade, pouco mais haverá a acrescentar quanto à importância que, achamos, o Teatro deve ter no nosso sistema de ensino. Insistimos, no entanto, na falha grave que é a sua ausência ou, se quisermos entendê-lo assim, na sua presença envergonhada. Não faz parte do âmbito de um trabalho académico propôr soluções, mais ainda sendo essas soluções do foro de uma política educativa. No entanto, consideramos que tratando-se de um trabalho para uma das disciplinas de um Mestrado em Educação Artística mal seria que não se questionasse a presença, ou não, do teatro no nosso sistema educativo. Não se vislumbra, pois, uma conclusão. Somos apenas uma voz “a clamar no deserto”, nada mais. Literalmente, um deserto cada vez mais árido de uma Escola cada vez mais inóspita quanto à criatividade.

NOTA SOBRE O ENSINO ARTÍSTICO - Fernando Rebelo






A ESTRADA DESERTA ou SE ELES A DESCOBREM AINDA NOS VÃO COBRAR PORTAGEM... (1)No princípio, até brincávamos...“ És professor de quê?...”“ De OED.”“ Que é isso?...”Nunca a estranheza deixou de ser óbvia. Um professor de uma disciplina chamada abreviadamente OED (Oficina de Expressão Dramática) era tido como uma criatura rara, pelo menos à atmosfera da Escola. Mesmo que esse professor já fizesse parte do quadro de professores da dita Escola. “Isso é teatro?...”“Pois. É isso...”E ficávamos por ali, para não dar mais explicações. Estivemos na Escola por favor, toleraram a nossa presençaParentes pobres. Aqueles que leccionaram OED nas nossas escolas sentiram-se sempre na pele de alguém que era tolerado. Legitimados e, como tal, gozando de moderada aceitação por parte da família. Éramos objecto de um sorriso de condescendência, um “faça favor de entrar” com um sorriso cínico e pouco mais.Com boa vontade e boa fé, os professores da disciplina de OED foram trabalhando à mercê de tudo o que lhes entenderam fazer os poderes instituídos.Para os lados de onde o Alentejo fica mais além, alguém se lembrou de criar a estranha ideia de que uma Licenciatura em Estudos Teatrais conferia o supremo dom a que qualquer comum mortal pudesse vir a exercer uma profissão de docente na disciplina de OED ou de algo que lhe valesse.Esqueceram-se, por acaso, que em Lisboa valem as suas próprias leis, que ora são assim e logo assado... E, diga-se em abono da verdade, calaram-se quando viram (terão mesmo visto?...) que tudo se desmoronava.Estivemos a falar de Educação, de sistema de ensino?Claro que sim.Isto aconteceu em Portugal há cerca de uma dúzia de anos atrás.Fez-se uma Reforma do Sistema Educativo e há uns meses atrás fez-se uma nova reforma sem que a avaliação da anterior Reforma tenha sido feita na totalidade. Gastaram-se dinheiros públicos em investimentos que foram mandados parar sem quaisquer explicações. Que se lixe o dinheiro! O Ensino público não pode nem deve estar subjugado a uma lógica puramente mercantil. Claro que sim.E já agora acrescente-se que, sobretudo, o Ensino público não pode nem deve estar submetido a uma lógica de políticas.É um assunto de Estado, não um assunto de programas partidários.O Ministério da Educação é um organismo cada vez mais anquilosado e obsoleto. Num país com cerca de 11 milhões de almas – metade das quais anda afastada da Escola – aquele organismo governamental tornou-se numa máquina de desresponzabilização. Uma espécie de avestruz. Sempre que surge um problema enterra a cabeça na areia e murmura: “Não me venham pedir responsabilidades...” e, em seguida, retira uma lei ou uma reforma ou novos programas do seu infindável e lustroso seio e ali fica toda a sociedade entretida a ler, a tentar decifrar aquele palavreado em ‘eduquês’ e, enquanto isso, a avestruz lá vai à sua vida, tranquila e satisfeita.Não basta produzir legislação. Importa que as leis tenham em conta as realidades e as prioridades de um país. Um sistema de ensino é pensado – desde a base até ao topo – em função daquilo que se considera prioritário e fundamental em termos de um Estado moderno, avançado e integrado num quadro de Estados chamado União Europeia. O ensino artístico no nosso sistema de ensino nunca existiu. Esta é a verdade. Educação Musical?... Onde? Educação Visual? Que é isso? Estamos há várias décadas com um sistema de ensino que, no papel, é uma coisa e, no terreno, é outra completamente diferente. Ler – Escrever – Contar: esta continua a ser a divina trindade do nosso sistema de ensino. A actividade docente obedece a uma lógica corporativista e é avessa a qualquer mudança. Cumprir programas, preparar para exames – estes são os altos desígnios a que aspiram os nossos docentes do pré-primário ao 12º ano. Não há tempo para mais nada. Expressões? Que raio será isso?Olhem para o horário de um mancebo com 14 anos, no 8º ano de escolaridade. Passa 5 dias por semana na escola, em aulas, cinco manhãs inteiras e duas tardes até às 18.45 horas. Aulas de Português, de Matemática, de Área de Projecto, de Estudo Acompanhado... Horas e horas seguidas. O mancebo, que de parvo não tem nada, já percebeu que há algumas aulas da tanga. É só estar lá, é só uma questão de ir. A Escola, para ele, é um lugar onde se vai para, nos intervalos estar com os amigos, estar numas salas a ‘ter aulas’. O mancebo chegou aos 14 anos de idade e a sua formação estética é nula: ouve a música que todos ouvem e essa é que é boa, foi a museus em visitas de estudo mas nem se lembra do que viu, foi ao teatro com a setôra de Português ver não sei quê, com nem ele sabe quem, foge dos livros a sete pés, jornais lê regularmente um dos três diários desportivos que neste país se publicam, até vai ao cinema ver o que de pior se faz nos Estados Unidos. Ao lado de qualquer outro mancebo europeu da sua idade não se lhe nota qualquer diferença. Exteriormente. É perigoso generalizar, mas o perigo real existe quando nos apercebemos que a generalização é tão vasta. Olhando à nossa volta reparamos que grassa a parolice e parece até que se cultiva de forma deliberada uma forma de ser e de estar cada vez mais ‘pimba’.Há cerca de três décadas atrás os pobres e os chamados ‘remediados’ tentavam elevar-se socialmente pela via do Ensino ou da Cultura. Havia efectivamente uma preocupação por ‘subir na vida’ e era através da Escola que essa ascenção era tentada. Os cursos nocturnos estavam cheios de gente que tinha trabalhado durante o dia, a figura do trabalhador-estudante era real. Desde a alfabetização, ao ciclo preparatório, dos liceus, à Universidade, houve gente que encontrou no sistema de ensino um modo de poder valorizar-se quer pessoal, quer social, quer profissionalmente. A Escola abriu-lhes portas para a Cultura: houve quem descobrisse a Poesia, outros a Música, outros, ainda, as Artes Plásticas, o Teatro. A sua valorização não se traduziu em acesso a bens materiais, passaram a dar atenção a outras coisas; libertaram-se, no sentido mais generoso da palavra.A Escola era vista como o sítio que permitia fazer a diferença. A maior parte desses tornaram-se melhores pessoas, cidadãos mais conscientes da sua cidadania, empenharam-se em causas, humanizaram os sítios em que habitavam, sem pedir nada em troca. É certo que continuaram a não dar importância a aspectos que lhes mereciam a importância que deveriam ter e, logo, começaram a ser olhados de lado. Com desconfiança. Os da Cultura não eram gente muito certa. O parolo se tem pela frente alguém que se expressa numa linguagem parecida com a sua mas com palavras estranhas aos seus ouvidos matarruanos começa logo a coçar-se e a sentir-se pouco à vontade. Olha-se para o gajo e vê-se uma barba descuidada, uma camisa a precisar de reforma, nem gravata, nem nada... Mau, Maria, que o gajo é um falinhas mansas... ´tás aqui, ´tás a levar com a enxada na cornadura... Ó mulher vai lá para dentro que isto é conversa de homens e você veja lá se desampara a loja que eu tenho mais que fazer...A Escola não soube acompanhar o país em que vivia, não percebeu que a democratização não passava pelo desleixo, pelo facilitar. A tampa nunca esteve no sistema educativo, quem lá estava deixou que o mesmo fosse prevertido de forma ignóbil. Era preciso mudar para que tudo ficasse pior ainda, para que os uivos lacinantes em prol do ‘isto d’antes é que era bom...’ fossem cada vez maiores e a Escola Pública chegasse onde chegou.
1975, 1980, 1990...Quê?! Já chegámos ao século vinte e um?!...Pois foi.Aqui no Sudoeste deste velhíssimo continente somamos já umas valentes centúrias de História. Levámos ciclicamente braços aos outros mundos. Escanzelados braços em busca de sustento, levados pela miragem da mudança de vida e desses mundos trouxemos os mesmos braços, mais nutridos, mais tilintantes de pulseiras e relógios, prontos a erguer betão, destros no fumegar dos escapes e hábeis a promover romarias e feiras fartas em foguetório, comezaina e cantorias rascas. O braço chorudo do torna-viagem tornou-se um marco a indicar o caminho: quem não alomba, não anda de Mercedes-Benz. O mote estava dado. Não tens dinheiro e ninguém te respeita, nem te considera, nem ouve o que tens para dizer. Quem não sabe fazer dinheiro, não presta para nada. Quando saí daqui, da terrinha, ia de mão à frente-mão atrás, era um zé-ninguém, um pobretanas que nem o nome sabia assinar. Hoje aqui me tens em cada Agosto: olha a fatiota, o sotaque, o chiar dos pneus, o luzir dos anéis nos dedos. Olha a minha ‘maison’. Dou dinheiro para a nova igreja, para a procissão, dou algum para a Junta de Freguesia. Sou um benfeitor, a bem dizer eu sou o Progresso.A ascenção social centrou-se na capacidade de fazer dinheiro. Aqueles a quem um dia chamaram ‘progressistas’ cansaram-se, compraram ‘jeeps’ e um monte algures no Alentejo. Hoje em dia, debruçam-se, curiosos, sobre a terra, em licenças sabáticas, como avestruzes envergonhadas dessa sua nova condição. De resistentes passaram a desistentes. O país real – o da telenovela e futebol, o do centro comercial e arraial nem se apercebe da sua existência. Não lhes liga pêvas. Está mais preocupado com outras coisas.O país vive, finalmente, a duas velocidades: de um lado, os que estão bem na vida e têm os filhos no ensino privado, pagam e reclamam, assumindo o direito de que o cliente tem sempre razão; do outro, a massa anónima e ressabiada que invade os centros comerciais aos fins de semana, lê as gordas de um dos três diários desportivos nacionais, consome novelas ou ‘filmes de acção’ e anda lixada da vida ‘por causa dos atestados médicos que os sacanas dos profs. metem’. São os utentes do nosso Sistema de Ensino Público. Hão-de constituir-se em associação, depois em Federação e, logo em seguida, serão uma Confederação para que sejam admitidos à mesa das negociações de um conflito que será resolvido quando o bom-senso imperar. O actual Sistema Educativo vive de ‘fait-divers’. É um conflito permanente e insanável, feito da discussão de acções de guerrilha. O Presidente de um Conselho Executivo gasta horas a falar com uma Associação de Pais que se arroga a capacidade de discutir assuntos do foro pedagógico. O Conselho Pedagógico de uma Escola reserva lugares para alunos, pais e funcionários com direito a voto. Discutem-se colocações de professores, coisas corporativas. Contam-se tempos de serviço, habilitações, graduações, acções de formação. Coisas de funcionário cansado que vai riscando no calendário os dias que faltam para ficar em casa a tratar do canário.O cidadão comum, preocupado em garantir a subsistência, alarma-se e incomoda-se quando não encontra sítio onde albergar as crias, passado que foi o período estival. Tem que ir trabalhar, ganhar a vida e nem o infantário, nem o adolescentário lhe mostram sinais de abrir as portas. Fica à espera, recorre a expedientes vários e nem reclama. Tudo se há-de compor. A Escola abriu. Ainda bem. Está tudo a funcionar no melhor dos mundos possíveis. Candidamente entregamos os nossos rebentos nas mãos acolhedoras da Escola. Estuda para o teste. Tens teste amanhã. Vou pôr-te na explicação. Podes passar de ano ‘cortado’ a quantas disciplinas?...O nosso mancebo sorri. Há-de andar na escola até ter, pelo menos, 18 anos. Dela – Escola – não espera grande coisa. Há outros caminhos. Ele sabe que sim. Se alguém lhe disser que a Escola visa, entre outras coisas, contribuir para a sua realização através do pleno desenvolvimento da sua personalidade, da formação do seu carácter e da sua cidadania, dando-lhe uma preparação para uma reflexão consciente sobre os valores espirituais, estéticos, morais e cívicos e que também lhe proporcionará um equilibrado desenvolvimento físico, o nosso mancebo há-de achar que estamos a gozar com ele. Estamos na Europa civilizada. Hoje são vésperas de 2005. Ainda bem que não vivemos no hemisfério Sul. Aqui, estamos com mais de 8 séculos de história no nosso canto do Sudoeste deste velho continente. Tiveste as aulas todas? Tens testes marcados? Sempre vão fazer exames no 9º ano?...No espelho retrovisor do nosso carro assoma uma cara que, sem nos responder, trauteia uma canção que lhe escorre pelos auscultadores do ‘walkman’.
O nosso mancebo hoje, aqui, neste nosso canto do Sudoeste do Velho continente, tem tudo: a net, o telemóvel, fronteiras abertas, liberdade, acesso a bens materiais. Na sua frente ergue-se uma estrada larga, larguíssima, mas deserta... Sem ideias, sem valores, sem referências. Há-de passar por toda a estrada sem que nela deixe a sua marca, sem que lhe ocorra sequer parar por momentos para contemplar a forma bizarra de uma nuvem, um vulto na paisagem, um assobiar mais agudo do vento. O dinheiro que leva nos bolsos há-de gastá-lo em paragens breves para satisfazer necessidades tão básicas como a fome, a sede, o sono ou a vaidade e, ainda, para pagar escrupulosamente todas as portagens que se lhe deparem ao longo do trajecto.
Fernando Rebelo – Out./04
(1) (publicado na revista BICICLETA nº 8 - edição de Mandragora - mandragorarte@netscape.net)

8.12.05

O SER E O TER - reflexão desencantada acerca da educação estética e artística no actual sistema de ensino - Fernando Rebelo

1. Temos – comparativamente a 1974 – acesso a um maior número de bens materiais. Em termos de aparência, um jovem português não se distingue de um qualquer outro jovem de outro país da Europa: as roupas são as mesmas, o calçado e todos os outros acessórios que constituem a sua indumentária são os mesmos. Exteriormente, as diferenças são praticamente inexistentes.
De 74 até aos nossos dias tudo se transformou radicalmente entre nós: a massificação do ensino concretizou-se, as universidades floresceram um pouco por todo o país, o fim da censura permitiu que houvesse um significativo incremento da edição de livros, o aparecimento de mais imprensa escrita, mais produções teatrais, mais cinema, mais arte. O próprio progresso e desenvolvimento da rede viária permitiu abater o fosso entre o litoral e o interior e tornou mais fácil a possibilidade de acesso das populações do interior aos bens culturais e da civilização.
De que país falo? Do nosso.
Temos, hoje em dia, um lugar lado a lado com os outros países europeus. Deixámos de ser e estar “orgulhosamente sós”.
É certo que viver na periferia da Europa tem os seus custos, mas a Europa percebeu isso perfeitamente e foi generosa. Nunca, desde 1697, tinha voltado a entrar tanto dinheiro em Portugal. Naquela data, era o ouro que nos chegava do Brasil. Aqui há uns anos foram os euros... E se a História não se repete o mesmo não se poderá dizer em relação à ganância e imbecilidade humanas, essas são as mesmas, não mudam e hão-de repetir-se pelos séculos dos séculos.
Tivemos de facto muito dinheiro, um rio caudaloso que inundou o país. Dinheiro que se destinava basicamente a colocar-nos mais à frente, dinheiro que se destinava basicamente a libertar-nos do atraso estrutural em que nos encontrávamos comparativamente aos outros países europeus. Foi um esforço da Europa, uma forma delicada de pedir ao parente pobre, de maneiras e hábitos rudes, inculto e bronco que o deixasse de ser, que parasse de a envergonhar.
Ora, é sabido que não se passa dinheiro para as mãos de quem se habituou a viver de expedientes. A nossa generosa e, diga-se de passagem, excessivamente centrada em si própria Europa esqueceu-se daquela máxima oriental: “Se vires um pobre com fome à beira de um rio não lhe dês um peixe, dá-lhe uma cana e ensina-o a pescar.”
Desbarataram-se os fundos europeus. A factura ainda está por pagar. A Europa foi generosa mas vai cobrar com juros...
Adiante.
Temos mais algumas coisas, é certo. Mas será que somos melhores?


2. É de educação e ensino que aqui vimos falar. Do que significa ser. Daquilo que se traduz em homens e mulheres realizados “através do pleno desenvolvimento da personalidade, da formação do carácter e da cidadania” preparados para “uma reflexão consciente sobre os valores espirituais, estéticos, morais e cívicos”. Parece que falei em seres de outro planeta. Mas não. Estive apenas a citar alguns dos princípios organizativos constantes na lei que (ainda) rege o nosso sistema educativo. É a lei que temos mas que não traduz aquilo que somos.
A Escola que hoje temos afastou-se da órbita desta lei, tomou um rumo desordenado e confuso. Foi sendo reformada ao sabor da alternância política, por impulsos, por paixões, como se fosse um terreno fértil sujeito às excentricidades dos agricultores que dele se apossavam. Quantas mais experiências se iam fazendo menos fértil se tornava o terreno. Os frutos que se iam colhendo não tinham grande qualidade, eram escassos. A Escola – e estou, naturalmente, a falar da Escola Pública – foi perdendo importância e, sobretudo, credibilidade.
Vamos aos factos: em 1992/93, por via da reforma curricular do sistema educativo surge, como que em substituição da anterior disciplina de Teatro – oferta de Escola para o 9º ano, uma disciplina de opção, integrada na componente de formação tecnológica, também oferta de escola, denominada Oficina de Expressão Dramática, que seria ministrada em três blocos: no 10º ano, no 11º ano e no 12º ano. Logo aqui surgiram as primeiras dificuldades:
1. A que alunos se destinava esta oferta? A todos aqueles que estivessem inscritos nos CSPOPE, independentemente do Agrupamento curricular em que se encontrassem. A realidade foi outra. Só aos alunos da área de Humanidades ou de Artes as escolas permitiram o acesso à disciplina, salvo algumas raríssimas excepções em que a mesma foi efectivamente leccionada a alunos de outras áreas.
2. No 10º ano, os alunos dos agrupamentos de Humanidades tinham que frequentar a disciplina de Métodos Quantitativos e dada a carga horária lectiva semanal ficavam impossibilitados, em termos legais, de se inscrever na disciplina de OED, no âmbito da formação tecnológica, uma vez que esta tinha uma carga horária de 6 horas semanais, o que se traduzia por estes alunos terem semanalmente mais 3 horas de aulas do que os seus colegas de outros agrupamentos. Em alguns casos, mediante autorização dos pais, foi possível contornar esta lacuna e efectivar a oferta de OED.
Mais... Quando tudo parecia indicar que o ME finalmente resolvera dar atenção à educação estética e artística e, desse modo, colmatar as sucessivas falências e continuadas faltas verificadas ao longo do percurso escolar de algumas gerações de alunos no âmbito de um verdadeiro e eficaz ensino estético e artístico; quando se pensou que o ME estava efectivamente interessado em seguir à risca o espírito da LBSE de 1986 e quando se começaram a sentir na prática os efeitos, logo se percebeu que quem – alheado da realidade – se dispôs a programar uma disciplina estava a contribuir para algo que parecia ser e, no fundo, não era. Como, aliás, se veio a verificar.
Para justificar a inovação e o desejo de mudança, o ME abriu largamente os cordões à bolsa, equipou as escolas às quais concedeu autorização para oferecer esta disciplina, enviou inspectores que verificaram a existência ou não de condições físicas para que as escolas pudessem oferecer a disciplina, os equipamentos chegaram atempadamente (órgão de luzes, rack, projectores, cabos eléctricos, tripés, aparelhagem sonora), largas centenas de contos foram gastos em equipamentos. Escolas secundárias de Viana do Castelo, Aveiro, Guimarães, Porto, Coimbra, Marinha Grande, Almada, Seixal, Setúbal, Alcochete, Lisboa, Loures, Portalegre, Cascais, Évora, Santo André, Faro, Albufeira, etc. tiveram a disciplina, centenas de alunos experimentaram, no verdadeiro sentido do termo, o contacto com uma disciplina artística, alguns deles descobriram vocações através da frequência de OED.
No entanto, o ritmo da alternância política ia introduzindo experiências. Chegou-se ao ponto de, em 1995, um Ministro encarar a possibilidade de entregar a leccionação da disciplina a licenciados em Educação Física! Isto ao mesmo tempo em que a Universidade de Évora abrira uma Licenciatura em Estudos Teatrais cuja saída, originalmente, se destinava a formar professores para esta área!
Confusos?... Ainda vamos a meio da narrativa. E olhem que a estou a encurtar de propósito e vou omitindo outros episódios não menos dignos de registo.
Depois, veio um período delirante como aquele em que se propõe, na abortada reforma proposta pelo último governo de Guterres, a criação de um curso de artes do espectáculo para o ensino secundário. Aqui, o episódio conclui-se com a saída inesperada de cena de Guterres e tudo acabou por ficar no papel. Ainda bem que aqui o efeito do ‘deus ex machina’ funcionou. Aquele curso era uma aberração, um completo desconhecimento do que era a realidade da nossa escola.
Até que chegamos aos nossos dias: estamos actualmente no primeiro ano de implementação da reforma do sistema curricular do secundário, o 3º ciclo também sofreu alterações no sistema curricular.
Tratemos um de cada vez: no que toca ao ensino secundário, desapareceu de todo a disciplina de OED. Sem qualquer explicação, sem que tenha sido objecto de qualquer avaliação, como num passe de mágica. Foi uma morte anunciada mas ninguém deu por ela, a não ser aqueles que nela investiram mais de uma década de trabalho, esses ficaram a clamar no deserto tomados de uma dúvida: aqueles equipamentos continuarão nas escolas ou será que as escolas os deverão devolver ao ME? Nem seria certo que pensassem em mais nada. Quanto aos licenciados que a Universidade de Évora vai fazendo sair em cada ano o único que nos ocorre sugerir é que tenham o mesmo destino que os equipamentos: depositem-se os licenciados no ME juntamente com os projectores, os órgãos de luzes, etc. São tão obsoletos e desnecessários quanto os equipamentos pagos com o dinheiro dos impostos de quem trabalha.
Quanto ao 3º ciclo, o panorama não é mais animador: existe, de facto, uma opção chamada Teatro que é oferta de Escola – o que significa que não existe em todas as escolas – e que abrange os três anos de duração deste ciclo do nosso sistema de ensino. Mas, atenção! A escola só poderá oferecer esta disciplina se nos seus quadros efectivos de docentes houver alguém que se disponibilize para o fazer. Qual é o perfil do professor que leccionará esta disciplina? Honestamente não vos sei dizer. Digo-vos, porém, que se presta a tudo. Está instaurado o espírito do ensaiador do grupo cénico, voltámos às récitas de curiosos.



3. Sugeriram-me que fizesse aqui uma comunicação na qual desse conta do que foi a minha experiência de leccionação da disciplina de OED ao longo de mais de uma década.
O estado de desencanto em que me encontro impede-me de partilhar convosco uma experiência que me fez ter uma outra visão da Escola: uma escola equilibrada, moderna, inovadora e criativa.
Nem sequer vos falei do panorama que encontramos no 1º e no 2º ciclos do nosso sistema de ensino. Quanto às expressões artísticas estamos no vazio, no nada absoluto. Elas estão inscritas nos programas – pelo menos a nível do 1º ciclo – mas, entre nós, estabeleceu-se a ideia de que os nossos meninos e meninas hão-de passar quatro anos das suas vidas a aprender a ler, escrever e contar. Tudo o resto são coisas de pouca ou nenhuma importância. Ao menos que eles e elas, todos saíssem desse ciclo de escolaridade possuidores dessas três competências!
Andamos a querer tapar o sol com a peneira e dizemos que sim, que os nossos meninos e meninas que frequentam o sistema de ensino público experimentam o contacto com as expressões artísticas e sabemos que isso não é verdade...
Sinto-me alguém umbilicalmente ligado ao teatro que, por circunstâncias várias, veio parar à Escola e dela fez a sua principal actividade em termos profissionais. Desenvolvi uma ideia de Escola fruto da minha actividade enquanto professor de OED. E, paulatinamente, um ser omnipotente chamado ME foi-me tirando o tapete, foi roubando o colorido à Escola e tornando-a cada vez mais cinzenta. A Escola, tal como a vejo hoje, (e agora fala também o pai...) tornou-se um lugar com pouco interesse. A sala de aula é cada vez mais desinteressante e cada vez menos espaço de descoberta, de experimentação, de criação.
Para onde caminhamos?
Sempre que penso no estado do nosso sistema educativo ocorre-me a imagem de um quadro de Bruegel baseado numa parábola bíblica (Mateus 15:14) sobre o cego que conduz outros cegos: “Deixai-os: são cegos, guias de cegos. Ora se um cego guiar outro cego, cairão ambos no barranco.”


Registe-se, para terminar, uma nota que não será tão à margem quanto isso: a casa onde Garrett viveu os seus últimos dias encontra-se em vias de demolição. O MC, após pressões, devolve a questão para o IPPAR, este, por seu turno, atira com a coisa para a CMLisboa que, por sua vez, emite uma declaração em que se fala de Pilatos.
Como vêem, as Sagradas Escrituras dão para tudo.
Este é apenas mais um episódio da sensacional novela da vida real de um país chamado Portugal.
Gostaria que o juntassem à vossa reflexão sobre a forma como tudo aquilo que poderia constituir um património cultural, um meio de elevação, é constantemente desvalorizado pelos poderes instítuidos.
Sei, no entanto, aquilo que gostaria que a Escola fosse.
E não é.
Quando o há-de ser? Não sei. E, além disso, quem se importaria em sabê-lo?...


Fernando Rebelo- Abr.05